Sonntag, 7. Dezember 2008

BRASIL: REFORMA AGRÁRIA


A ANÁLISE DE JOAQUIM NABUCO:

O conflito de terra como herança do período da Colônia

O "reformador social, agitador, revolucionário e pioneiro do socialismo e do trabalhismo no Brasil", Joaquim Nabuco, como resumiu Gilberto Freyre, tinha, como nenhum outro político brasileiro de seu tempo, uma visão concreta e uma sensibilidade firme com referência às possibilidades dos homens abandonados por séculos no interior do país. Com um pouco de fantasia, poderíamos constatar na atuação de Nabuco já os primeiros sinais do fenômeno das Ligas Camponesas, de Francisco Julião, particularmente quando dizia aos escravos abolidos: Fora da associação não tendes que ter esperança! Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo não tinha papas na língua. Com o rigor e o radicalismo característicos da juventude, o estudante dos direitos colocou às celebridades do Recife e de Rio de Janeiro o espelho perante a cara: "O começo de nossa sociedade no decurso da história do século XVI foi idêntico com o tráfico dos negros. Temos, portanto, uma propriedade baseada em um crime" (J. Nabuco, A Escravidão, 1870).

Nabuco foi além de habitual abolicionista — reformador e agitador social, liberal-radical, com alguma coisa de socialista, "socialista ético" — em sua crítica ao sistema de trabalho e de propriedade dominante no Brasil imperial: homens donos de homens, terras imensas, dominadas feudalmente por umas poucas famílias privilegiadas; escravidão e latifúndio. É possível chamar Nabuco também de "moralista socialista", inclusive quando a gente considera algumas de suas idéias; "revolucionário autêntico", como disse doutor Gilberto na introdução do tomo autobiográfico de Nabuco — Minha Formação.

Nabuco nasceu num sobrado na periferia "urbana", às margens do Recife, onde a cidade e o interior se encontravam. Seu interesse pelos escravos e suas condições de vida, junto com sua identificação humana para com eles, tornou-se dedicação existencial em prol da abolição. Quando chegou o dia 13 de maio de 1888 Nabuco não se mostrou satisfeito, pois imaginava uma transformação radical da economia nacional. Diante da sobrevivência do sistema da escravatura, disfarçado nas estruturas socioeconômicas muito parecidas ao antigo sistema, e apenas substituidas por "instituições auxiliares", Nabuco reclamou: "Acabar com a escravidão não basta." O sistema da escravidão tinha de ser destruído totalmente.

Com uma crítica mordaz, denunciou o sistema dominante no Império, sistema de trabalho e de propriedade, no qual alguns homens eram os senhores absolutos sobre seus semelhantes, sistema pelo qual umas poucas famílias privilegiadas, em suas fazendas e a custa de seus escravos negros, enriquecem de maneira insuportável. Aos olhos de Nabuco, o que se seguiu à abolição, substituindo os escravos por chamados "livres" artífices e trabalhadores, foi apenas a aplicação do velho truque de "só para inglês ver", porque continuava o monopólio da terra recebida como herança, sem qualquer modificação jurídica, quer dizer, o sistema perdurou por intermédio das "instituições auxiliares", sustentando a escravidão.

"O que é o operário?", perguntou, e sua resposta foi: "Nada, O que virá ele a ser? Tudo." Pois gente trabalhando, isso significaria o futuro, a expansão e o crescimento da economia do Brasil, dizia. Seria o trabalho, o trabalhador, que, segundo ele, precisavam ser libertados, apoiados e protegidos, e isso em toda a extensão do país, sem diferenças de raças nem de ofícios. Apesar de que, no século XX, muita gente não concordava com isso, porque Nabuco veio da Casa Grande e sempre foi católico praticante e não marxista, por motivos da verdade histórica, deve-se constatar que este "reformador social" foi o verdadeiro precursor do moderno movimento brasileiro de valorização do trabalho e da gente de trabalho. Ele tinha percebido o desprezo tradicional ao trabalho manual cultivado pelo português. O substantivo trabalho deriva do termo latim tripalium, uma espécie de enxada de três dentes de metal. Na linguagem do povo, a palavra tripalium logo pegou um ressaibo desagradável, no sentido de tortura e cansaço. Trabalho ou, entre os vizinhos de vernáculo castelhano, trabajo, em qualquer hipótese, não era nada apropriado para um hidalgo. Os numerosos filhos de alguém, os filhos da nobreza lusitana ou castelhana — fossem eles ricos ou pobres — não tinham nada a ver com esta coisa. Seu preconceito para com o trabalho manual marcou não apenas a colônia, mas também os mais diversos povos ao longo das costas dos territórios asiáticos que ficaram por períodos mais longos sob domínio português, como por exemplo, nas ilhas indonésias de Flores e Timor.

Do ponto de vista jurídico, para Joaquim Nabuco, a escravidão foi um crime contra a humanidade. Durante toda sua vida ele não foi apenas um escritor rebelde, mas assumiu também o papel de agitador político e revolucionário social. Hoje em dia resta-nos apenas admirar tamanha visão profética revelada pelo monarquista Joaquim Nabuco em seus tempos. Ele comparou a escravidão com um mal que, como um câncer, se espalha pelo corpo inteiro da nação, contaminando e destruindo os valores morais de toda gente. É por isso que solicitou o fim desta vergonha nacional, defendendo uma democratização do solo, uma reforma agrária por meio da qual os libertados pudessem participar da expansão da economia nacional como agricultores livres e iguais. Mais urgentes do que reformas políticas, disse ele, são reformas sociais, antes de tudo duas grandes reformas: a completa abolição cívica e territorial dos escravos, o único meio para a integração da pátria, e, a segunda, a extensão global da educação moral e da instrução técnica.

A escravidão produz a permanente divisão do povo em duas classes: em livres senhores e escravos, situação que leva ao mesmo tempo a uma luta permanente entre estes dois grupos. A escravidão, explica Nabuco, está uma instituição que acompanha a nossa pátria desde que esta acordou para existir e viver. Quase simultaneamente, com o seu descobrimento, ela entrou no Brasil. Tão logo que este crime complexo começou a entrar no corpo da sociedade, ele pariu leis incompatíveis com qualquer moral, leis cívicas, contraditórias às leis da natureza. A escravidão transformou a moral em moral dupla, quer dizer, adicionalmente, uma moral para a classe dos senhores de engenhos ou donos de escravos, respectivamente. A sociedade escravista fez do trabalho, coisa mais nobre de todos os esforços humanos, a mais vulgar de todas as atividades. Assim, a escravidão é uma escola do crime, ela envenena os corações dos senhores igual aos corações de seus escravos.
Quando a abolição se tornou realidade, Nabuco não se contentou com a mera libertação dos escravizados, mas, pelo contrário, logo percebeu os problemas colaterais de uma ação tão isolada como esta forma de abolição: à massa dos libertados, não apenas faltaria a qualificação profissional para conseguir a integração na sociedade burguesa; o escravo libertado também careceria da mentalidade e autodisciplina do operário em uma sociedade capitalista. Nestas condições, os abolidos que não permaneciam nas plantações, como camponeses destituídos de qualquer direitos, formariam a grande massa de proletários nas margens dos centros urbanos. A proporção da população preta é considerável, antes de tudo, onde tradicionalmente se encontravam as grandes usinas de açúcar, no Nordeste, especialmente no Recife e na Bahia, e também, no Rio de Janeiro, mas igualmente em Minas Gerais, onde se procurou muita mão-de-obra de escravo africano durante o ciclo do ouro, e em São Paulo, onde se colocou os negros nas grandes plantações de café. Mais tarde, eram especialmente os grandes centros da indústria e do comércio, como São Paulo e Rio de Janeiro, que atraíram grandes contingentes de pretos da Bahia e do Recife.

Devemos concordar com César Benjamin, que relaciona o problema agudo dos tempos da escravidão, o da fuga de braços (baratos) das fazendas por motivo da fuga de escravos aos quilombos remotos, com a política adotada pelos escravocratas diante da abolição vindoura: como — depois da libertação dos escravos — seria possível manter a necessária mão-de-obra barata na fazenda, impedindo-se ao mesmo tempo a formação de minifúndios, ou seja, de núcleos da agricultura de subsistência, ao redor do latifúndio e, simultaneamente, manter, no país, o próprio poder, nunca questionado durante séculos inteiros?

A solução do problema seria a publicação da Lei de Terras do ano de 1850, que revogou a anterior Lei da Terra Livre, lei tradicional que garantiu a cada um o título de posse referente à parcela de solo em que ele havia vivido e trabalhado por um período suficiente, ou seja, por exatamente um ano mais um dia. O artigo 125 da antiga Constituição havia consagrado a velha prática: cada cidadão brasileiro — embora não sendo o proprietário legal de um pedaço de terra no interior ou na cidade — que lá vive por 10 anos ininterruptos, e sem que alguém tenha protestado contra isso, e sem consciência de que ele tenha ocupado o que era propriedade de outros, que — nestes termos — cada cidadão tenha o direito de cultivar uma parcela de terra até um tamanho de 10 ha e de nela morar. Ele também tem o direito de receber um título de posse pelo cartório. Assim era a antiga legislação.

A partir de então (1850) concede-se o direito de receber um título legal sobre um pedaço de terra apenas às pessoas que podem apresentar um documento de doação fornecido pela própria Coroa, ou também quando a compra legal da parcela pode ser devidamente comprovada. Assim — um efeito colateral da lei torornou-se o solo um objeto, artigo de comércio. E outro aspecto negativo: em casos duvidosos de legalidade da propriedade de terra, renova-se preferencialmente a velha prática de queimar arquivos, repetindo o exemplo de Rui Barbosa que — depois da abolição —, no dia 14 de dezembro de 1890 mandou queimar os registros dos escravos arquivados no Ministério de Fazenda. Seguindo este exemplo, há alguns anos, o cartório de São Miguel do Guamá, na região da transamazônica Belém-Brasília, foi destruído pelas chamas de um fogo de origem duvidosa.

No ano de 1822 entrou em vigor a Lei da Terra Livre; os camponeses, porém, continuavam sendo escravos destituídos de direitos. Ao chegar o tempo de pôr os escravos em liberdade, os senhores de engenho fizeram tudo para segurar o solo, como observou César Benjamin. Seguraram com toda firmeza as velhas sesmarias em seu poder, enquanto que o restante da terra brasileira ficou em poder da Coroa e dos beneficiários da monarquia, que ganharam imensos territórios que depois capitalizaram. A massa dos infortunados, os caboclos, negros libertados e camponeses, ficaram impedidos de participar da festa. Os sem-terra (como Joaquim Nabuco os chamou) não conseguiram ter acesso à propriedade de terra. Assim, o problema da escravidão transformou-se em problema de terra, constatou Joaquim Nabuco.

A partir da abolição, os pretos encontraram-se libertados da opressão da escravatura, mas ficaram cativos da pobreza nos bairros miseráveis das periferias dos centros urbanos. A massa dos ex-escravos transformou-se em uma camada marginalizada da população, subsistindo em quarteirões coletivos, nos quais viviam 50 famílias, e nos porões de velhos casarões e mocambos das grandes cidades. Nas capitais de Estado, que sofreram as conseqüências de megalocefalia, a cada manhã turmas inteiras de empregadas domésticas de pele escura deixam suas modestas moradias para assumirem seus postos nos edifícios e habitações luxuosos de seu patrão ou de sua patroa. 80% das criadas, empregadas, cozinheiras e lavadeiras provêm da senzala.

Foi o grande Rui Barbosa que comentou: O cadáver da escravidão começa a putrefazer-se nas ruas do Brasil, e acrescentou que as condições de vida dos escravos nos engenhos de açúcar seriam relativamente melhores do que as condições em que o crescente proletariado preto se encontrava depois da libertação.

Heinz F. Dressel